quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Criada comissão interministerial para combater violência contra população LGBT

Grupo é composto por representantes das secretarias de Direitos Humanos, de Políticas para as Mulheres, da Secretaria-Geral da Presidência e dos ministérios da Justiça e da Saúde.




O governo formalizou ontem (10) a criação da Comissão Interministerial de Enfrentamento à Violência contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT). O grupo é composto por representantes das secretarias de Direitos Humanos (SDH), de Políticas para as Mulheres, da Secretaria-Geral da Presidência e dos ministérios da Justiça e da Saúde. A comissão foi instituída no último dia 29 e será  coordenada pelo Departamento de Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República. A portaria de criação do grupo foi publicada na edição desta terça-feira (10) do Diário Oficial da União.

Com a criação da comissão interministerial, as ações dos cinco ministérios nas áreas de prevenção, enfrentamento e redução das diversas formas de violência contra a população LGBT poderão ser integradas. De acordo com a SDH, o grupo interministerial também vai permitir o acesso a dados sobre estatísticas e o perfil dos crimes contra a população LGBT.
Dados da Ouvidoria Nacional e do Disque Direitos Humanos (Disque 100) mostram que, entre 2011 e 2014, foram registradas mais de 7,6 mil denúncias de violência contra a população LGBT. Em 2014, os estados com maior número de registros foram São Paulo (53 denúncias), Minas Gerais (26) e Piauí (20). A discriminação foi a causa de 85% das denúncias, e a violência psicológica motivou 77% dos registros.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Tênis, calça jeans, camiseta e caderno é o uniforme de volta às aulas das trans...

Com as bolsas de estudo de 840 reais por mês do projeto Transcidadania, Ciarah, Natasha, Paula, Eliza, Renata, Eshiley e Valeryah voltam à escola para recuperar o tempo perdido.





Natasha Nazário parou porque era discriminada. “Ah, era aquela coisa de viadinho, bichinha”, lembra. Eliza Coelho desistiu porque tinha de correr da escola para fugir dos meninos. “Tocava a sirene e eu saía na frente de todo mundo. Se encontrasse alguém do portão para fora, eles implicavam comigo. Levei muita corrida”, conta. Ciarah Pitima diz que os meninos a obrigavam a fazer coisas com eles. “Eu batia o ponto no banheiro ou então na pracinha lá embaixo. E não era um menino só, eram quatro, cinco. Eu ficava com medo.” Renata dos Santos Silva atesta: “O bullying está sempre presente.”

Por um motivo ou outro, todos parecidos, faz muitos anos que elas deixaram de ir à escola. Natasha, Eliza, Ciarah e Renata se encontraram na tarde de quarta (4), dia de volta às aulas no Cieja (Centro Integrado de Educação de jovens e adultos) Sé, no Cambuci, para recuperar o tempo perdido.


Uma prova de português e matemática definiu de onde elas retomam os estudos. Natasha vai fazer 7ª e 8ª séries, Eliza a 5ª e a 6ª. “Estou vendo essa oportunidade como uma segunda chance para todas nós. Antes era só eu de bichinha para aguentar os bofes, agora nós somos muitas. Se eu pudesse mandar um recado para o prefeito Fernando Haddad, diria isso: muito obrigada pela chance que está nos dando”, diz Natasha. Ciarah tem certeza de que a experiência vai ser bem diferente de quando ela era obrigada a participar de orgias escolares. “Agora é outra história, somos várias amigas, não estamos mais sós.”

Tênis, calça jeans, camiseta – e o caderno universitário completando o look – foi o figurino escolhido pela maioria das participantes do programa Transcidadania, que ofereceu bolsas de estudos de R$ 840 por mês para 100 transgêneros frequentarem a escola diariamente. “Gosto dessa pegada”, disse Renata. A empolgação com que as alunas chegaram para o primeiro dia de aula foi a mesma com que o Cieja Sé, uma das quatro escolas da cidade envolvidas no programa, as recebeu. Na entrada, painel com fotos delas trazia o recado: “Escreva uma nova história. Recomece e reconstrua seus sonhos em 2015.” 

Em vez de discriminação, balinhas e mensagem de boas vindas distribuídas pela assistente pedagógica educacional do Cieja Sé, Daniela Cavalcanti Gonini. Para ela, está tudo ótimo: receber alunos trans faz parte da vocação da escola, que tem capacidade para 490 pessoas. “Nós praticamos a diversidade”, diz Daniela, explicando que as salas de aula do centro reúnem jovens, adultos, idosos e 10% da frequência tem alguma deficiência mental. “Muitos não puderam estudar por conta de deficiência, por falta de condição, ou abandonaram a escola por sofrer preconceito.”

Eshiley Oliveira - “O sobrenome do meu marido”, avisa – garantiu presença no segundo dia de aula. “Nossa, foi ótimo. Estou me sentindo de volta à sociedade. Amanhã com certeza estou aqui de novo.” Valeryah Rodriguez – “É numerologia”, explica – parou de frequentar a escola em 1993, quando começou a tomar hormônio. “Sempre tinha uma piadinha. Mesmo sem ser eu já era chamada de travesti, então pensei: ‘Vamos dar um jeito nisso’”, conta ela, que se transformou em travesti e depois em transexual. Tentou voltar à escola em outras ocasiões, fez tentativa em escola particular e levou um golpe de uma escola falsa de educação à distância. “Gastei uma grana e quando chegou o certificado ele não existia, não tinha firma reconhecida e nem validação do MEC. Era uma folha de sulfite impresso”, diz. “Voltar para a escola veio me devolver uma alegria. Estou adorando pegar metrô, ter carteirinha de estudante, me sinto voltando para a adolescência. E não vou quero parar aí, quero estudar psicologia.”
As aulas no Cieja, que duram duas horas e 15 minutos, são apenas uma parte do programa Transcidadania, que prevê 6 horas diárias de atividade educativa. “É como um trabalho, tem de ir todo dia”, diz Alessandro Melchior, coordenador de políticas públicas para LGBTs da prefeitura de São Paulo. “No ano todo, só são permitidas três faltas que não tenham relação com alguma situação emergencial comprovada.” As horas restantes serão completadas com aulas de cidadania, cursos técnicos e visitas a museus.

A coordenadora do Transcidadania, Symmy Larrat, ela própria transgênera, diz que a possibilidade de o programa existir é uma combinação de cenário propício com vontade política do prefeito. “O momento que estamos vivendo é resultado de muita militância, que conquistou visibilidade para essa população, e a sensibilidade do prefeito”, explica, dizendo que muita coisa já está sendo feita para melhorar a vida dos LGBTs em São Paulo. “A cidade tem de capacitar os serviços públicos para lidar com essa população. A guarda municipal está recebendo instruções de como respeitar os direitos humanos dos LGBTs e os postos de saúde também estão aprendendo a lidar com eles. Algumas UBS (unidades básicas de saúde) já têm capacitação e por isso mesmo são as mais procuradas.”
A escola, na opinião de Symmy, também precisa se adaptar. “O que tem de ser ensinado em sala de aula é cidadania”, declara.










segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O pior de 2014: notícias sobre a comunidade LGBT que não queríamos ter dado

Violência e discriminação contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais mostram como está longe alcançar a igualdade por que lutamos.


Em um ano marcado por ótimas notícias, com famosos saindo do armário, a causa LGBT pautando as eleições presidenciais no Brasil e avanço numérico dos lugares que aprovam o casamento gay - mais de 30 dos 51 Estados americanos realizam o casamento entre pessoas do mesmo sexo - , 2014 teve saldo positivo. No entanto, não é a hora de abaixar a bandeira e achar que a comunidade LGBT já está perto de obter a igualdade de direitos por que lutamos.
ara lembrar que essa luta está longe de ser vencida, selecionamos alguns fatos que foram noticiados com muita tristeza e que esperamos não ter de repetir em 2015.











O ano de 2014 começou com a notícia de que o presidente da Nigéria, Goodluck Jonathan, assinou uma lei que proíbe o casamento gay e criminaliza associações, sociedades e encontros homossexuais, com penas de até 14 anos de prisão. Este, porém, não foi o único país que criminalizou a homossexualidade. Em fevereiro, o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, sancionou uma lei que pune atos homossexuais com prisão perpétua.
“A África hoje é o continente com o maior número de leis homofóbicas, para diversos países da região. O caso de Uganda é particularmente chocante", comentou na época o assessor de direitos humanos da Anistia Internacional, Maurício Santoro. A organização revelou, em maio deste ano, que diversos governos ao redor do mundo ainda toleram a homofobia.
No Brasil, segundo a Anistia Internacional, a legislação melhorou nos últimos anos, mas ainda é um dos campeões em número de assassinatos de LGBTs, chegando a 300 por ano, de acordo com a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).
Em 2014, inclusive, foram diversas as notícias de agressões e assassinatos que demos, a mais marcante foi o caso de João Antônio Donati - um jovem de 18 anos que foi encontrado morto em um terreno baldio em Inhumas, região metropolitana de Goiânia, em setembro. Ele tinha sinais de violência e um saco plástico dentro da boca. O assassino, um jovem de 20 anos, foi preso após confessar o crime, que não foi julgado como um caso de homofobia, mas sim como crime passional, por ele ter feito sexo com a vítima antes de matá-la.
O caso gerou repercussão internacional e protestos, mas a conversa sobre criminalização da homofobia não avançou. A comunidade LGBT aliás, foi repetidas vezes alvo do ataque de políticos e representantes de entidades religiosas, que reforçaram o preconceito e incitaram o ódio aos LGBTs.
A frase "aparelho excretor não reproduz", dita em setembro pelo então candidato à presidência Levy Fidelix (PRTB) durante debate dos presidenciáveis da TV Record, vai ficar na memória dos milhares de brasileiros ofendidos pelo discurso homofóbico em rede nacional. Fidelix ainda chegou a dizer que "gays precisam de atendimento psicológico bem longe da gente" e que não estimularia a união homoafetiva caso fosse eleito.
No entanto, os direitos dos LGBTs foram pauta durante toda a campanha eleitoral de 2014, ajudando a dar visibilidade à causa gay e oferecendo esperança de que 2015 será um ano melhor para os direitos igualitários. A presidente Dilma Rousseff chegou a declarar, pela primeira vez, que é a favor da criminalização da homofobia. Essa fala veio imediatamente depois de Marina Silva retirar do seu plano de governo a mesma proposta.

Diretor queniano usa o cinema para tentar curar a homofobia


Nairóbi - "Como alguém vira gay?", essa é a pergunta que Jim Chuchu faz, com um sorriso incrédulo e impotente, enquanto explica à Agência Efe que seu filme, o primeiro que fala abertamente sobre a homofobia imperante no Quênia, foi proibido com a desculpa que promove a homossexualidade.
Há um ano, quando começaram a filmar, Chuchu e sua equipe sabiam que estavam quebrando um tabu, o de fazer um filme sobre os problemas de ser gay em um país e um continente presos no armário. Sendo assim, o veto dos censores quenianos à exibição do filme no país não foi uma grande surpresa.
"É algo que nunca havia sido feito antes, então muita gente nos disse que seria restrito. A única forma de descobrir era fazendo", disse Chuchu.
A comunidade de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais (LGBT) começou há anos a protestar contra as leis que penalizam suas relações em 38 países da África Subsaariana - inclusive com pena de morte -, mas poucos cineastas se atreveram a amplificar essas vozes no continente.
"Há poucos filmes africanos sobre este assunto. Nós queríamos ser parte disso", explica o diretor queniano.
O amor à arte e à militância levaram dez artistas do grupo multidisciplinar Nest, baseado em Nairóbi, a declarar guerra à moralista sociedade queniana com um filme chamado "Stories of Our Lives".
A obra, que estreou em setembro no Festival Internacional de Cinema de Toronto (TIFF), soma um título à pobre visibilidade do cinema gay africano, que até agora só vive de renda estrangeira.
Não em vão, dos 15 filmes do gênero rodados em solo africano, só o queniano e "Beauty" (África do Sul, 2011) são produções genuinamente africanas.
Enquanto a cruzada da comunidade LGTB ugandense deu a volta ao mundo através de premiados documentários americanos, a frutífera Nollywood - a Nigéria produz mil títulos por ano - só conta com três filmes de temática gay, dois deles com abordagem à pedofilia e ao satanismo.
"Stories of Our Lives" era a primeira que tirava da clandestinidade a vida de um grupo que no Quênia é punido com até 14 anos de prisão.
Os elogios que o risco e a bilheteria do filme colheram em Toronto não foram suficientes para que a Comissão de Classificação de Filmes do Quênia autorizasse sua exibição.
O filme, segundo o órgão censor, "promove a homossexualidade, o que é contra as normas e valores nacionais".
"Ser homossexual não é como se unir ao Exército nem uma tendência de moda. Você não sai para a rua e se torna gay, de repente", ironiza Chuchu.
O cineasta quer saber "onde estão escritas" essas normas que sua obra parece violentar, e adverte que "a forma como uma sociedade trata as minorias diz muito sobre si mesma".
Os atores - cujas identidades permanecem anônimas por questões de segurança - dão vida a histórias reais sobre as hostilidades que a comunidade gay enfrenta diariamente no Quênia, por isso que a proibição "demonstra o quão desligada está a Comissão da realidade", critica Chuchu.
O filme tenta acabar com um preconceito que a homossexualidade é "antiafricana", em apoio a intelectuais como o famoso escritor queniano Binyavanga Wainaina, que "saiu do armário" este ano.
Em uma polêmica entrevista gravada no começo do ano, com a ajuda de Chuchu, o escritor defendia que a homofobia é uma herança colonial.
Meses depois, os quenianos - divididos entre o desgosto e o assombro pelo discurso de Wainaina - não podem ver "Stories of Our Lives" nos cinemas, na internet e nem de forma clandestina.
A Nest não quer correr riscos depois que um dos produtores, George Gachara, foi acusado de ter exibido o filme sem autorização. Apesar de não ter sido exibido, os quenianos falam sobre a obra nas redes sociais.
"Foi criada a conversa", disse Chuchu, sobre a repercussão.
"A África aceitará os direitos da comunidade LGTB?", pergunta à Agência Efe o diretor, que alterna momentos em que acredita ser "uma questão de tempo para falar sobre estes temas" e às vezes não se mostra tão otimista.

Disponível em: http://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/diretor-queniano-usa-o-cinema-para-tentar-curar-a-homofobia

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Homossexuais poderão receber benefícios de empresas de parceiros

Medida contribui para diminuir diferença entre casais de pessoas do mesmo sexo e casais de pessoas de sexos diferentes


Uma decisão recente do TST (Tribunal Superior do Trabalho) estabeleceu que casais homossexuais também poderão receber benefícios da empresa de um dos parceiros, como planos médicos, assim como já acontece com os casais heterossexuais.
A medida segue no sentido da igualdade de direitos e da liberdade de gênero. Em 2010, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) havia reconhecido aos companheiros do mesmo sexo o direito ao recebimento de previdência privada complementar e, um ano depois, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a união estável aos homossexuais.
Além disso, uma instrução normativa do INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social) também já havia equiparado a concessão de benefícios previdenciários entre uniões homossexuais e heterossexuais.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Livro relembra perseguição à comunidade LGBT durante a ditadura

Na época, o anticomunismo se articulava com valores conservadores na produção de políticas repressivas de Estado contra os gays, pelos riscos que representavam à “família”, à “moral” e aos “bons costumes”




É fato que entender a complexidade do período da ditadura militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985 não é tarefa fácil. Foram 21 anos cheio de contradições. Apesar do fato de o golpe de Estado ter sido planejado por um número limitado de militares de alta patente, em especial coronéis e generais do Exército, a verdade é que as Forças Armadas tomaram o poder no 1º de abril de 1964 com amplo apoio de setores das classes médias, da igreja católica, do empresariado, dos latifundiários e do governo norte-americano.
Os golpistas utilizaram um discurso democrático para implementar um regime autoritário que revogou direitos civis e restringiu liberdades públicas. Com a pretensão de legitimar o golpe, buscaram preservar uma aparência de respeito à legalidade, justificando o novo regime e suas ações de governo por meio de ampla rede de normas jurídicas e atos administrativos: decretos, leis, atos institucionais e complementares, dentre outros.
Se compreender os meandros políticos e jurídicos da ditadura exige um enorme esforço analítico, como comprova a profusão de reflexões nos últimos anos sobre esse tema, entender a relação entre a ditadura e a homossexualidade é questão ainda mais complexa.
Do cruzamento entre a ditadura e a homossexualidade, diversas questões emergem de plano. Quais foram os efeitos da ditadura no cotidiano de mulheres que amavam outras mulheres, de homens que desejavam outros corpos masculinos ou mulheres e homens que se recusaram a reproduzir as noções e o comportamento hegemônicos de gênero? A situação de gays, lésbicas, travestis e transexuais piorou ou melhorou sob a ditadura durante os anos 60, 70 e 80? Houve uma consequência real na vida do “homossexual comum” quando os generais substituíram os civis no governo, quando a Lei de Segurança Nacional fortaleceu o poder arbitrário do Estado, quando a censura passou a exercer maior influência sobre a produção cultural e quando o novo regime acabou com as liberdades democráticas impondo uma moral baseada em valores conservadores? E o movimento social LGBT, então em incipiente organização, como foi afetado por essa conjuntura específica?
A homossexualidade constituía, segundo a própria visão oficial do governo, uma ameaça subversiva ao regime autoritário. O anticomunismo se articulava com valores morais conservadores na produção de políticas repressivas de Estado contra pessoas LGBT, pelos riscos que estas representavam à “família”, à “moral” e aos “bons costumes”. Assim, normas jurídicas e forças policiais foram mobilizadas, especialmente depois do golpe de 1964, para restringir direitos desse segmento LGBT e hostilizar essas pessoas de lugares públicos. Mas essa repressão teve de conviver com seu contraponto, que foi a liberdade e a resistência que se materializaram em espaços de sociabilidades homossexuais, ainda que guetificados.
Essa ambiguidade deve ser ressaltada. A tentativa de normalização da sociedade em uma régua bastante conservadora de valores nesse momento conviveu com as resistências que surgiam nas universidades justamente no momento da chamada “revolução sexual”, com novos papeis sociais conquistados pelas mulheres, especialmente das classes médias, e com a ampliação dos espaços de sociabilização homossexual. Essas transformações culturais eram compreendidas pela direita como atentatórias à moral e aos bons costumes, contra a religião católica e nocivas à família tradicional brasileira.
Infelizmente, parte significativa das esquerdas compartilhavam essas mesmas noções moralistas e homofóbicas, o que acabava por marginalizar os militantes com desejos homoeróticos. Reconhecer isso, no entanto, não significa colocar em um mesmo patamar os tratamentos que a ditadura e as esquerdas dispensaram a esse tema. Nesse sentido, é imperativo ressaltar a diferença existente entre o atraso da esquerda nessa pauta e o poder do Estado para reprimir os homossexuais, usando a censura e a violência direta de modo a interditar um debate sério sobre esta questão.
O ano de 1968 marcou a passagem para outra fase da história do regime militar. A edição do Ato Institucional n. 5 (AI-5), decretado em 13 de dezembro de 1968, acabou com esse ensaio de emancipação que mal tinha sido desencadeado. A repressão, a censura, o medo, as violências, a cassação de direitos e o poder policial, que aumentou neste momento, acabaram com qualquer sonho de uma organização LGBT.
As torturas, as prisões arbitrárias, os desaparecimentos forçados, as execuções sumárias, a censura e o estado de exceção contra as esquerdas, os estudantes e os movimentos político-sociais afetaram toda a sociedade. Para os gays e as lésbicas, a repressão abafou as possibilidades de se imaginar novos modos de vida, formas de expressar o desejo e os afetos, bem como movimentos sociais identitários. As arbitrariedades dos órgãos de Estado criaram uma paranoia e um pânico entre as pessoas, o que dificultou qualquer oportunidade de organização política para contestar as atitudes homofóbicas, conservadoras e moralistas, tanto da ditadura quanto da sociedade como um todo.
Talvez um dos exemplos mais evidentes da repressão institucionalizada neste período foram os expurgos de homossexuais dentro do Itamaraty entre 1969 e 1970, uma campanha que só deu resultando parciais, pois havia muitos diplomatas que protegeram os alvos desta campanha. Esse episódio da ditadura ainda é pouco pesquisado, mas os sete diplomatas que foram cassados explicitamente por “prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa” refletem bem as influências moralizadoras do regime militar contra a suposta subversão de homossexuais.
A partir de 1974, com a abertura lenta e gradual e a reorganização das oposições à ditadura, criam-se as condições para uma organização política de gays e lésbicas. Apesar dessas iniciativas de organização do movimento, a repressão policial nesse período não cessou. Nessa época ocorreram episódios fundamentais para compreender a ação repressiva da ditadura sobre a vida de gays e travestis na cidade de São Paulo no período de 1976 a 1982. Intensificaram-se as operações de policiamento ostensivo e de repressão judicial contra a população LGBT. Destacam-se, em particular, os estudos criminológicos do delegado Guido Fonseca sobre as travestis e as rondas com prisões arbitrárias que foram acentuadas sob o comando do delegado José Wilson Richetti no governo de Paulo Maluf
Como reação às violências na cidade contra esses setores marginalizados, os novos movimentos sociais que surgiram, especialmente os movimentos feminista e negro, serviram como exemplos para o incipiente movimento LGBT, que se organizou nos anos 70 e 80 justamente como parte da onda mais ampla de redemocratização do País após duas décadas de ditadura.
Sob diferentes óticas, portanto, o livro Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade busca uma melhor compreensão sobre esse período. Quem trabalha para buscar a memória e a verdade sobre o regime militar tem de ampliar o campo de visão para entender todas as maneiras em que a ditadura influenciava e afetava a sociedade brasileira. As lésbicas, os gays e as travestis também foram e seguem sendo vítimas da repressão, do discurso moralizador e do regime arbitrário. Gays e lésbicas também foram protagonistas da enorme mobilização que logrou enfraquecer e derrubar a ditadura para criar uma nova situação mais democrática que, apesar de suas limitações, permitisse conquistar direitos e novos espaços dentro da sociedade brasileira e por um País mais justo.
Visibilizar as violências praticadas pelo Estado contra esses segmentos sociais e, ao mesmo tempo, a resistência que estes empreenderam é uma tarefa que diz respeito não apenas ao passado, mas também ao presente.
A homotransfobia ainda é, infelizmente, uma questão atual no Brasil. O crescimento da influência de religiões conservadores sobre o sistema político tem imposto uma série de bloqueios e até de retrocessos para as lutas por igualdade e reconhecimento. A defesa dos direitos das pessoas LGBT e a defesa da democracia se confundem. Assim, inserir essa agenda nas políticas de justiça e de reparação em curso no País permite compreender que a luta por aprofundar a democracia é, também, uma luta que demanda o pleno respeito à diversidade sexual.
*Esta é uma versão adaptada da introdução ao livro Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade, que será lançado no dia 26 de novembro, às 19h, na Livraria da Travessa do Leblon no Rio de Janeiro e no dia 27 de novembro, às 19h, na Biblioteca Mário de Andrade em São Paulo.

TítuloDitadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade
Organizadores: James Green e Renan Quinalha
Editora: EdUFSCar 
Número de páginas: 332
Preço: 49 reais
ISBN: 978-85-7600-386-1

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Beijo gay em público: por que alguns LGBTs ainda têm dificuldade em aceitar?

Para especialista, homofobia internalizada provoca rejeição à troca de carinhos de um casal homoafetivo em locais públicos

Uma pesquisa realizada pela Universidade de Indiana, nos EUA, levantou uma polêmica: alguns gays toleram demonstrações de carinho de casais heterossexuais, mas são contra casais do mesmo sexo que se beijam em público ou mesmo andam de mãos dadas. Mas qual seria o motivo disso?
No estudo “Direitos formais e privilégios informais para casais homoafetivos: evidências de um experimento nacional”, o pesquisador Long Doan entrevistou 1 mil norte-americanos, entre heteros, gays e lésbicas, e verificou que os heteros estão mais dispostos a aceitar a equiparação de direitos legais para casais gays, como o direito à herança, por exemplo, do que a ver dois gays se beijando em um parque público. Até aí, esse resultado já era esperado. No entanto, o que surpreendeu Doan foi o fato de que alguns gays também se mostraram contra as demonstrações de afeto em público entre duas pessoas do mesmo sexo.
Para o psicólogo e psicoterapeuta Klecius Borges, especialista em terapia homoafetiva, se a mesma pesquisa fosse realizada no Brasil, os resultados seriam parecidos. "Uma coisa é você ser a favor de algo que racionalmente faz sentido. Trata-se de direitos civis e isso está mais no campo da racionalidade, daquilo que a pessoa pensa e do que é politicamente correto. Agora, quando você fala em ver duas pessoas manifestando carinho é uma coisa mais complicada, porque gera uma reação mais emocional. Uma coisa é a ideia e outra é você ver aquilo concretizado na sua frente", diz.


Para Angelo Sordi, de 19 anos, esse é justamente o problema. "A sociedade deve se acostumar a ver casais homossexuais trocando carinhos por ai. Nós, homossexuais, vemos casais heteros trocando carinhos a todo tempo, e porque é que eles não podem ver casais homossexuais da mesma forma?"
Gay assumido há 5 anos, ele confessa, porém, que não gosta de ver pessoas se beijando em um clima mais quente em público, sejam gays ou heteros, mas acredita que demonstrações de afeto como um abraço, selinho ou beijo não fazem mal a ninguém.
Já Vitor Astoni, de 19 anos e gay assumido há 3 anos, conta que só se sente realmente à vontade para demonstrar carinho pelo parceiro se estiver em um lugar frequentado por outros LGBTs, pois tem medo de ser alvo de alguma agressão homofóbica em outros locais. Ainda assim, ele às vezes se arrisca, mas sempre de maneira contida.
Acho que afetos sem apelo sexual são super agradáveis de se ver. Mas, sendo homossexual ou hetero, sou contra qualquer casal que simule afetos de cunho sexual, algo que, ao meu ver, devem ocorrer em locais íntimos do casal”, opina.
Quem não tem medo e nem se incomoda com o que outras pessoas vão pensar é Estéfani Cristina Moura, de 26 anos. Namorando há 2 anos com outra mulher, ela afirma que não se priva de fazer carinhos e trocar beijos em locais públicos, pois não vê como isso pode ser uma falta de respeito com outras pessoas.
“Não acredito que o respeito [das outras pessoas] venha de nos privar de namorar em uma praça de alimentação, em um shopping, em um parque ou em um restaurante. O respeito sempre vem de pessoas bem criadas. Educação vem de berço, e não digo berço de ouro, mas sim de caráter e respeito”, diz.
Para o psicoterapeuta Klecius, no entanto, alguns homossexuais acabam criando desculpas para não beijar em público, sem perceber que estão, na verdade, tentando disfarçar a homofobia internalizada. “'Por que precisa disso? Qual é a necessidade? Mesmo em casais heteros eu acho que não é legal’. Tem uma série de motivos que os gays alegam, mas que refletem uma dificuldade deles de entender essa nova realidade”, observa.
Ele lembra, porém, que a vontade de beijar alguém em público ou andar de mãos dadas é algo muito individual. Há quem faça porque sente essa necessidade, há pessoas que fazem como uma forma de se afirmar na sociedade heteronormativa e defender a causa LGBT, mas também tem quem não faz simplesmente porque não sente vontade ou tem medo.
"De qualquer maneira, a possibilidade de casais homoafetivos demonstrarem afeto em público é uma realidade muito nova e tem muito a ver com a visibilidade sobre os LGBTs, que passou a ocorrer muito recentemente", diz ele, lembrando que ainda levará um tempo para que todos lidem com essa situação de maneira mais natural. Inclusive os próprios LGBTs.